sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A MORTE DO CAMPEÃO

A MORTE DO CAMPEÃO
Problema policial de Mr. JARTUR

A competição aproximava-se do final. Os motores, no máximo da aceleração, faziam uma barulheira ensurdecedora, e os motociclistas conduziam quase deitados sobre os tanques do combustível, concentrando toda aatenção no manejo das motos.
Os seis émulos que comandavam a prova, pouco distanciados entre si, faziam prodígios de perícia e temeridade, numa luta sem quartel pela melhor posição.
Quando entraram na zona mais perigosa e deserta do circuito, Walter seguia à frente, ambicionando ser o primeiro a chegar à recta das tribunas. Era esse, também, o desejo dos motociclistas que o seguiam a poucos metros. Apareceu-lhes uma curva para a esquerda, a descer, e todos afrouxaram o andamento, erguendo-se um pouco sobre o selim, para ver melhor a pista e dar inclinação aos veículos.
As motos entraram na curva. Ao chegarem a meio, os condutores voltaram a abrir o gás, preparando-se para desfazer a curva e retomar a velocidade máxima.
Walter continuava no comando. Conduzia sabiamente, com uma segurança absoluta, mantendo sem esforço a escassa distância que o separava dos adversários. Subitamente, algo de estranho aconteceu. Engenho e homem, lançados a mais de 160 quilómetros por hora, correm para a berma da pista e precipitam-se no profundo abismo, que se cava na margem direita, onde terminava a faixa de rodagem.
Os outros motociclistas, atacados pela fúria da velocidade e pelo desejo de vencer, olhos postos na pista e nos comandos das suas máquinas, só pressentiram o desastre quando já estava consumado. Lançaram um rápido olhar a moto e deixaram-na para trás, sem ver que ela, rolando pela ribanceira, cuspiu o seu ocupante, que continuou a descida, a bater de pedra em pedra. Ao violento contacto com o fundo rochoso do precipício, o depósito de gasolina rebentou, despejou parte do conteído e incendiou-se. Poucos metros mais acima, o corpo do desportista jazia, inerte.
Quatro dos competidores que presenciaram o desatre, tiveram uma expressão espontânea, misto de satisfação e dó. O outro abrandou a velocidade, reduziu ainda mais e parou, uma centena de metros adiante. Voltou a moto, e aproximou-se do sítio onde o veículo do inglês abandonara a estrada. Não se chegou junto do rival tão tragicamente retirado da prova, nem sequer desmontou da moto. Olhou para o corpo imóvel e concluiu que, com tantos ferimentos e tanto sangue vertido, era impossível que o homem ainda tivesse vida. Por isso, concedendo ao ex-adversário um último olhar de compaixão, Marcos Dias arrancou velozmente, numa tentativa diabólica de não ser ultrapassado pelos concorrentes que se aproximavam, ouvindo-se já o ruidoso bater dos motores.
Num aumento de velocidade progressiva, acompanhado pelo roncar dos escapes, Marcos Dias foi o quinto homem a transpor a linha de chegada, arrancando da multidão frenéticas aclamações, que coroaram a sua temeridade.
o o O o o O o o O o o
Na cabine destinada ao corredor português, o seu amigo Jartur esperava-o, congeminando algumas palavras de felicitação. Quando Marcos Dias chegou ali, conduzindo vagarosamente a sua "Norton", recebeu o abraço do colega e disse:
- Ajuda-me depressa a pôr o carro lá fora. Deu-se ali atrás um acidente, e tenho a impressão de que aquilo não foi normal.
E, depois de passar um lenço pelas faces cheias de poeira e fumo, prosseguiu:
- Logo que cheguem os últimos, quero ir até lá para ver o estado em que ficou o corpo e a máquina.
Olhando a ambulância que aguardava o final da competição, em frente às tribunas, no local destinado ao estacionamento dos carros de socorro, Jartur respondeu:
- Diabo de mania a tua! - Pigarreou de uma maneira estranha e continuou, com um sorriso significativo: - Depois de duas horas de "equitação", respirando areia e gás, ainda te sentes com vontade de ir repetir pela...
- Escusas de estar com réplicas - vociferou Marcos, cortando a fala ao amigo. - Se queres vir, vem ! Se não queres vir, fica ! Eu não deixarei de ir ! E, quando voltar, por certo já não trarei este peso na consciência ! - Terminou, com voz mais calma, passando pela testa a mão de novo enluvada.
- Ganhaste ! - murmurou Jartur. - Quando sonhas com uma maldade, és capaz de revolver o mundo para encontrar o seu autor. Já agora, acompanho-te...
Entretanto, chegaram os últimos corredores.
A ambulância entrou na pista, voltou à direita, e Marcos Dias fez com que o seu "Mercedes" a seguisse de perto, não obstante a grande velocidade atingida. Pouco depois, os dois carros diminuiram de velocidade e o português fez estacionar o seu automóvel a pouca distância do outro, deixando entre eles apenas o espaço necessário para que a equipa de socorro pudesse sair com a maca.
Marcos e Jartur, acompanharam os maqueiros na difícil descida, e aproximaram-se do corpo ensanguentado. O capacete de protecção deixara-lhe a cabeça quase intacta, mas o resto do corpo parecia desfeito.
O cadáver, deitado de bruços, estava meio pendurado num enorme rochedo, pelo qual escorria ainda o líquido rubro e viscoso que lhe saíra das veias. O fato de cabedal, negro, estava manchado e roto em diversos pontos. Um pouco abaixo da omoplata esquerda, via-se no cabedal um pequeno orifício circular, ao qual Marcos Dias dispensou especial atenção. Por ali, pouco sangue saíra, mas notava-se a roupa interior ensopada naquele humor ainda quente.
Da moto, só restavam os ferros, com a pintura completamente destroçada, e os metais mais débeis sinistramente retorcidos.
Com dificuldade, os homens da ambulância conseguiram transportar o cadáver até à pista, onde a maior parte dos motociclistas que participaram na prova se haviam juntado. A polícia conservava os populares à distância, permitindo apenas a aproximação dos concorrentes e do pessoal da organização.
Logo que conseguiu chegar à estrada, auxiliando os maqueiros, Marcos aproximou-se do director da corrida, que também se deslocara até ali, e afirmou:
- Tenho a dizer-lhe, senhor Montazel, que a corrida deste ano acaba de ser assinalada com um crime.
O homem, de aspecto desportivo, onde apenas contrastava a sua grande barriga, ficou estupefacto com as palavras daquele motociclista e tê-lo-ia mandado para o diabo, se não soubesse que se tratava de um jovem detective que já inúmeras vezes fizera triunfar a justiça.
- Mas... o desastre... como explicar?... - limitou-se a tartamudear , com a voz a quere extinguir-se.
Marcoas olhou em redor e ciciou-lhe algumas palavras, fazendo sinal a um polícia para que se aproximasse. O agente correu, solícito, e o detective deu-lhe algumas instruções.
o o O o o O o o O o o
Vinte minutos depois, estavam todos os concorrentes ao "Grande Prémio de Nápoles", reunidos num pavilhão anexo à pista. A um canto, encontravam-se alguns membros da organização, um inspector da polícia, alguns oficiais e o colega do detective. Marcos Dias, a quem o inspector delegara a solução do caso, ocupava o centro do compartimento.
Depis de lançar em redor um olhar atento, o investigador disse, dirigindo-se em geral aos seus camaradas de corrida:
- Eu compreendo que todos os senhores estão... - sorriu e continuou, ainda com o mesmo sorriso sardónico - à excepção do criminoso, com grande interesse de apreciar o meu discurso. Porém, porque quero e devo concentrar a minha atenção apenas nos suspeitos, eu peço-vos o favor de abandonar esta sala, ficando só os que vinham próximo do Walter, quando o desastre se deu.
Marcos calou-se, e os desportistas começaram a sair, permanecendo na dependência apenas quatro deles, exactamente aqueles que o detective sabia que ficariam, pois ainda se lembrava dos números das máquinas que o haviam deixado para trás. Eram precisamente esses números que se viam nos capacetes que os motociclistas seguravam ainda.
Logo que a porta bateu, após a saída dos não suspeitos, Marcos Dias fez um breve sinal ao amigo, o qual se muniu com um pequeno livro para fazer as anotações que achasse necessárias. E então, o investigador começou:
- Um de nós é o criminoso. Porém, de mim não suspeito! - e prosseguiu, desfazendo o anterior sorriso - Qual de vós será então? É isso que vamos saber. Você!? - disse com mais som, apontando um dos colegas. - Em que lugar ía quando o Walter se despenhou?
O interrogado pareceu ficar nervoso e, depois, esclareceu num arranco:
- Precisamente atrás dele... talvez uns seis ou sete metros.
- E não foi você que o matou, pois não? - disse isto olhando-o bem nos olhos cinzentos, estudando as reacções que as suas palavras provocariam.
- Não, não fui eu realmente quem o matou. Nem sei nada... nada notei... - respirou perturbado e exclamou, já mais calmo: - Ia muito atento à condução.
- Já esperava essa resposta . Eu sei que nenhum de vós vai exclamar "Fui eu!" . Mas.. está bem, senhor Mason. Se eu precisar de mais algumas declarações suas, depois lhas pedirei. - Voltando-se para outro colega, prosseguiu. - Mr. Kimson... ah! Agora me lembro. Você vinha à minha frente quando o desastre se deu, não é verdade? Notei até que a sua máquina entrou na curva demasiadamente pela direita, não foi?
- Sim, isso é verdade. A suspensão relaxou-se um pouco, e eu temia apertar as curvas. Quanto ao desastre, confesso que me surpreendeu imenso, pois nada de anormal notei, até porque eu vinha preocupado com a minha moto e nunca desviei a atenção dos comandos.
- Pois, pois! - aceitou o detective. - Também eu não desviava os olhos da estrada, a não ser que um de vós me passasse, ou o passasse eu. Quanto aos nossos colegas... você não surpreendeu nenhum gesto suspeito, qualquer ruído estranho, semelhante a um tiro?
- Não, senhor Marcos. Nem uma coisa, nem outra... os motores faziam tal barulho...
- Obrigado. Por agora mais nada. É possível que depois volte a ter necessidade das suas declarações.
Os olhos dos circunstantes não deixaram de fitar o detective, que observava minuciosamente os rostos dos camaradas, tentando surpreender qualquer expressão de culpa. Marcos Dias sabia que o criminoso estava ali. Quem sabe se já o teria interrogado. O culpado, por certo estudara cuidadosamente o seu alibi. E, considerando isso, o detective avaliava as perguntas antes de as arriscar, atentando minuciosamente nas respostas que en troca recebia. Voltou-se de repente e, apontando para um dos presentes, perguntou, quase gritando:
- Martinez?! Qual era a sua posição?
Todos notaram que o atingido pela pergunta se sobressaltou. Debaixo da camada de poeira e suor já seco, o seu rosto adquiriu uma cor mais viva, e respondeu:
- Eu era o último do grupo, pois o senhor ultrapassou-me momentos antes. Creio até que na altura do acidente, a sua máquina ainda não se distanciara da minha mais do que cinco metros.
- Efectivamente! O caso está mais duro do que eu imaginava... nada se esclarece. Você notou alguma coisa de anormal? Como vinha atrás, tinha possibilidade de ver todos os outros.
- Lamento! Também nada vi que possa fazer luz no caso. Como todos, eu vinha também com a minha atenção concentrada na moto. Só o bom andamento me importava. Dão-me licença que fume? Obrigado! - disse, depois de o director lhe ter feito um sinal.
Marcos Dias estava visivelmente preocupado. Olhou mais uma vez, à sua volta, expeliu pelo nariz, com força, uma pequena porção de ar, e disse, voltando o indicador para o último dos desportistas:
- Senhor Sarrazi... imagino que também nada de importante tem a dizer, não é certo?
- Sim, é verdade. Eu corria com interesse, e principalmente naquela zona final não desviei a atenção da máquina. Aliás, é precisamente a essa atenção que eu devo a vitória de hoje.
Quando Sarrazi terminou, o investigadorvoltou a passar a mão pela testa onde ainda se notava a marca deixada pelo capacete, e falou com enfado.
- Obrigado, amigo. Acho que é melhor eu abandonar um pouco as investigações, pelo menos até nos recompormos. Estou desejoso dum banho frio... e creio que todos o desejam. - Depois de soltar um suspiro e pasar a dextra por uma das pernas, prosseguiu: - Tenho a impressão de que nenhum de nós saíu ileso. Eu tenho aqui uma queimadela que me arde furiosamente... descuidei-me com o escape. Você - continuou, falando para o homem que ùltimamente interrogara - tem uma arranhadela no rosto, coisa sem importância que muitas vezes acontece.
- Imagino que será coisa insignificante. Nem sequer notei - levou a mão ao rosto e extraíu da ferida uma pequena crosta de sangue já seco.
O detective aproximou-se um pouco do inspector e do responsável da corrida, dizendo:
- Será melhor mandá-los descansar, visto que agora nada mais se adiantará. Talvez depois de uma boa refeição se consiga alguma pista.
O inspector concordou com a decisão de Marcos Dias, e os motociclistas saíram. Os policiais iam também abandonar o pavilhão, quando um agente pediu licença para entrar e estendeu ao detective um lenço quase branco, dentro do qual estava embrulhado um objecto de formas irregulares.
- Foi encontrada precisamente no sítio onde o senhor disse para procurar - afirmou o agente, limpando ao punho do dólman, o suor que lhe descia do rosto.
O detective tirou do lenço uma pistola coberta de poeira e dise, dirigindo-se ao polícia que a trouxera:
- O senhor escusava até de ter tanto cuidado, pois eu já não esperava que ela trouxesse as impressões digitais do criminoso, porquanto todos os participantes na corrida calçavam luvas. Em todo o caso, fez muito bem. Obrigado, pode retirar-se . - Depois, voltando-se para os presentes, informou: - Esta "Parabellum", foi sem dúvida a arma utilizada pelo criminoso. Como eu imaginava, ele lançou-a fora quando passava naquele bocado de pista horrível e poeirenta, a dois quilómetros daqui.
O inspector, examinou também a arma e devolveu-a a Marcos Dias. Este, por sua vez, premiu o fixador do carregador, e extraiu cinco cartuchos de dentro do carregador. Depois, experimentou o funcionamento da arma. Fez recuar a culatra, e o cartucho ejectado por ese movimento caíu, sem grande ruído, no soalho do pavilhão. O obeso director da corrida, iniciou um movimento de recuo que lhe ditara o instinto de conservação, mas imobilizou-se e acabou por sorrir, enquanto o jovem detective, imperturbável, se curvou para apanhar a munição. Juntou o cartucho, meteu o carregador no sítio e guardou a arma, na intenção se confrontar o calibre do cano, com a bala que certamente o médico legista já extraíra.
o o o o o o o o o
Marcos e Jartur, estavam nos seus aposentos do hotel "FORMIDABILI", onde o detective relia os apontamentos feitos pelo amigo, enquanto saboreava uma chávena de reconfortante café. O telefone tocou e Jartur foi atender, limitando-se a pronunciar o seu nome. Segundos depois, pousou o auscultador e dirigiu-se ao companheiro:
- Era o doutor Brognoli. Diz que a "ameixa" foi encontrada no pulmão esquerdo e pertence a uma arma de nove milímetros. A morte foi imediata. O corpo apresenta inúmeras fracturas. - Jartur pegou no livro que o amigo lhe estendia, e anotou aqueles dados.
Marcos Dias sorveu mais um pouco de café e ficou imóvel por alguns minutos, enqunto os seus olhos fitavam as ténues espirais que se elevavam do recipiente e desapareciam antes de atingir o tecto. As suas feições estavam tensas, retratando o enorme esforço que o seu cérebro fazia. De súbito, levantou-se e saltou para o telefone. Discou um número e aguardou que atendessem. Jartur continuava sentado, folheando plàcidamente o último exemplar do "Corriere della Sera".
Quando Montazel falou, do outro extremo da linha, o detective disse:
- Ainda bem que o agarro em casa. Mande prender imediatamente o...
- Alto! - gritou Jartur correndo para junto do amigo - Não vês que me ias estragando o problema ?! Vá! Fala mais baixo...
o O o O o O o O o
O Mercedes deslizava velozmente, deixando para trás o solo italiano. Os seus ocupantes conversavam, gargalhando abertamente sempre que um dito espirituoso o induzia. Nem o roncar do motor, nem o chiar dos pneus, nem a música da telefonias, nem o gritar dos cadeados que seguravam o atrelado onde viajava a moto, nem o sibilar do vento que lhes fustigava o rosto conseguiam ser mais fortes do que a sua alegria.
Durante centenas de quilómetros, a sua alegria não diminuiu. Multiplicou-se, até, quando os dois portugueses avistaram o céu azul-claro da sua pátria.
o O o O o O o
PERGUNTA - SE:
Quem foi o criminoso?
Qual foi o pormenor que o acusou?
Exponha o seu raciocínio.

Publicado na secção policial "MISTÉRIO", que o autor orientou na colecção
de livros policiais "PANTERA NEGRA", em 1958.

Sem comentários: